dez162012
Autor: Mizaél Donizetti Pugioli. • Ano de publicação
original: 2004. • Origem: Livro "Dignidade dos pobres". • O tempo
aproximado necessário para ler este artigo: 15 minutos.
1.
Situação política, religiosa e sócio-econômica

1. A
população
No século XVII era muito difícil de fazer um recenseamento. Conforme
pesquisas históricas, a França, nessa época, devia ter uma população que
oscilava entre 17 a 20 milhões de habitantes. Embora o número de crianças fosse
elevado, uma média de 20 a 22 por família, a população permanecia como que
estacionária.
Só a mortalidade infantil dizimava 50% delas. “Como o cemitério estava
no centro da cidade, a morte estava no centro da vida”1. Depois, “as guerras, a fome, as
doenças são as causas que levam, muito rapidamente, à queda do número da
população, talvez, às vezes, até 14 milhões2”.
As pessoas envelheciam depressa: a média de idade era de 20 a 25 anos de
idade entre os pobres. Os burgueses que se alimentavam melhor e que possuíam
maiores oportunidades de segurança chegavam a uma média de 40 a 45 anos de
idade.
A população foi duramente castigada por duas guerras: a Guerra dos
Trinta Anos3 e a Guerra da Fronda.
A primeira trouxe conseqüências graves para toda a França naquele
século. Assim a descreve um historiador: “Parece que a história humana chegara
ao seu final quando se entra nesse período; não se dá mais importância às
pessoas em particular, nem muito menos ao povo como tal. Vale somente a
brutalidade da guerra e seu instrumento de violência, o soldado. Estamos diante
do poderio da guerra ao qual se rendem bens e vidas, almas e corpos, homens,
mulheres e crianças. Quem possui uma arma é rei, pode fazer o que quiser. Por
conseguinte, não existe crime, tudo é permitido. A atrocidade dos saques nas
cidades e a incrível alegria que seguem aos roubos por parte daqueles que o
praticam, são repetidos, dia após dia, tanto nas aldeias desprotegidas quanto
junto às famílias indefesas. Por todas as partes, as pessoas são humilhadas,
feridas, assassinadas; a mulher torna-se objeto que passa de mão em mão.
Finalmente, só existem gritos e lágrimas4”.
Depois, outra fase de desgraça foi a Guerra da Fronda5. O Duque Carlos de Lorena, falando
sobre os voluntários que faziam parte do exército que comandava, dizia com
cinismo: “Cada um dos meus soldados carregam um demônio em seu corpo e, esse
demônio, ante a possibilidade de um saque, se transforma em três ou quatro, a
ponto de que se torna impossível dominá-lo”.
As conseqüências da devastação dessa guerra podemos encontrar em relatos
que eram feitos através de cartas à São Vicente de Paulo, enviadas pelos
missionários da Congregação da Missão – padres Vicentinos, e que muitos desses
relatos eram publicados na revista “Relations”: “Acabamos de visitar 35 aldeias
do decanato de Guisa onde encontramos cerca de 600 pessoas, cuja miséria é
tamanha, que se atiram sobre cachorros e cavalos mortos, depois ainda que os
lobos já tinham saciado sua fome. Só em Guisa há mais de 500 enfermos abrigados
em buracos ou em cavernas, lugares mais apropriados para abrigarem animais do
pessoas humanas6”.
De Saint Quintín, em 1652, escreve um padre da Missão a São Vicente de
Paulo: “A fome é tão intensa que aconteceu já virmos homens comendo terra, ou
capim, ou casca de árvores; ou ainda rasgar dos próprios farrapos com os quais
se protegem para poder comê-los. Porém, uma coisa que não ousaríamos dizer se
não tivéssemos visto com nossos próprios olhos e que é algo que nos causam
verdadeira indignação, é ver que comem seus próprios braços e mãos e depois
morrem de desespero7”.
A cidade de Paris não escapa dessa desgraça. “Em Port-Royal foram
recolhidas 240 religiosas, expulsas e abandonadas. Paris via os mendigos se
multiplicarem: foram contados mais de 10.000. No bairro Saint-Médard, 11.800
famílias viviam na miséria e havia 12.000 no bairro de Saint-Marcel. Cada dia
uma centena de pessoas morria no Hôtel-Dieu. Cada mês, Paris contava cerca de
10.000 óbitos. A periferia oferecia um espetáculo repugnante e lamentável. Numa
delas, em Villeneuve-Saint-Georges, 1.500 cavalos estavam apodrecendo ao ar
livre. Em outros lugares da periferia, como em Étampes e Palaiseau, os
moribundos se arrastavam como lagartas sobre as carniças8”.
2.
Situação religiosa
Há duas religiões que dividem a população: o catolicismo e o
protestantismo9. O povo fica dividido entre uma e
outra e oscila ao sabor das influências sucessivas.
Por outro lado, a falta de condições satisfatórias na economia e na
cultura provoca variações rápidas e coletivas de opiniões em meio à população,
sobretudo nos mais pobres. Mudam com facilidade de religião. Profetas itinerantes
percorrem as aldeias aproveitando-se da situação de fraqueza e ignorância do
povo. Acreditados em possessões diabólicas ficam fascinados diante de qualquer
coisa que acontece; muitos desses pregadores aproveitam-se dessas oportunidades
para enganar ainda mais, o povo simples.
O clero católico constitui a segunda classe social, logo depois da
nobreza. Tem muitas influências políticas por causa do capital que se dispõe.
Tinha seus próprios representantes. Possuía tribunais e assembléias. Recebia os
dízimos da população e não pagava nada ao Estado. É o grande proprietário
imobiliário do país. Possui quase 70% das terras. É uma classe poderosa.
Financia, com generosidade, as guerras religiosas.
“Essa grande potência reúne 123 bispados e 15 arcebispados. Não há menos
que 152.000 igrejas ou capelas e 40.000 conventos. Calcula-se, em 1660 que
havia 266.000 eclesiásticos, 181.000 religiosos ou religiosas10”.
O clero é dividido em três categorias distintas:
1. O alto clero. Composto de bispos e abades que estavam ao nível da
nobreza; vivia em busca de privilégios e de influências. “Há bispos crianças,
por exemplo, Carlos de Levis, com 4 anos de idade… Henrique de Verneuil, nomeado
bispo de Metz, com 10 anos e meio de idade. Em 1596, há, do total de 14
arcebispados, 6 ou 7 sem arcebispos; de 100 bispados, 30 a 40 sem bispos.
Citemos ainda um exemplo: o cardeal de Sourdis teria uma potência de guerra
comparável à do grande príncipe de Conde11”.
2. O baixo clero. Era composto de padres e vigários de baixa condição
social e econômico. Viviam sem regra alguma de conduta e eram ignorantes.
Paris, para uma população de 450.000 habitantes12,
há 100 igrejas e 10.000 padres. No meio rural, porém, ou não há ou são muito
poucos. Os prédios das igrejas estão deteriorados, não existe nenhum cuidado de
manutenção. Há igrejas sem confessionário, sem púlpitos. Na verdade havia uma
enorme disparidade entre alto e baixo cleros. Bispos e abades eram os maiores
proprietários do reino, enquanto padres e vigários viviam na miséria, com um
pequeno salário, a côngrua…
3. Os religiosos. Muitas ordens religiosas necessitavam de reformas.
Havia muitos escândalos. Religiosos com costumes pouco modestos. Havia, entre
eles, uma grande ostentação tanto dentro quanto fora dos conventos. Em 1597, em
25 dioceses da França, existiam 120 abadias sem abades legítimos. Muitos
ocupavam este cargo apenas por status ou por conveniências
pessoais. O controle, por parte das autoridades, era quase inexistente.
Por outro lado, o clero protestante é extremamente honrado e numeroso.
Possuem 700 igrejas e 4 academias célebres: Saumur, Montauban, Sedan e La
Rochelle13.
3. A
situação sócio-político-econômica
Em nada podemos comparar a França do século XVII com a França dos dias
de hoje. A França, naquela época, vivia sob a égide do absolutismo. Em 1643,
com a idade de 5 anos, Luís XIV é sagrado rei de França e o cardeal Mazarino é
seu primeiro ministro. Com 24 anos começa a reinar sendo considerado o monarca
que melhor representou o Absolutismo, sendo autor da famosa frase “O Estado sou
eu”.
O Estado absolutista deve ser compreendido na sua mais íntima relação
com a estrutura da sociedade. O conflito entre as classes sociais foi condição
fundamental para a sua manutenção. O próprio rei instigava o conflito
procurando sobrepor-se a ele e dele tirar proveito. Protegia a alta burguesia,
assegurava os monopólios comerciais e industriais, arrendava-lhe impostos,
garantia-lhe ascensão social, apoiando-a contra clero e nobreza.
Reciprocamente, concedeu privilégios ao alto clero e domesticou a nobreza,
atraindo-a a seus palácios por meio de cargos e pensões. Também protegeu as
corporações dos artesãos contra os grandes capitalistas, assegurando-lhes os
direitos, ao mesmo tempo em que defendeu artesãos e capitalistas contra os
assalariados. Garantiu aos camponeses direitos de posse e propriedade
adquiridos pelo costume.
O poder real, em suma, descansava sobre o conflito generalizado que
tendia a equilibrar as forças sociais, especialmente o conflito entre as duas
classes mais poderosas, nobreza e burguesia.
Na França do século XVII, haviam três classes sociais: clero, nobreza e
terceiro estado. O território era dividido em vários principados. Príncipes que
administravam suas porções de terra, até com bastante autonomia, alguns com
total independência. Era a nobreza. Viviam nos grandes castelos. Existia o
monarca, mas este, na verdade, exercia um poder mais teórico do que real sobre
essa questão de propriedade.
Há duas classes sociais distintas: A nobreza e o Terceiro Estado.
1. A nobreza era o Primeiro e Segundo Estado. Ao Primeiro Estado pertenciam
a corte e o alto clero. Constituía um número reduzido de pessoas que viviam de
pensões reais, usufruindo os benefícios dos cargos públicos.
Toda esta nobreza estava abarrotada de privilégios. Privilégios fiscais
como isenção de certos impostos, justiça especial, tinha direito a caçar,
títulos, armas e a exigir obrigações feudais dos camponeses. Dividia-se
duas. A primeira é a nobreza cortesã, favorecida e conferida pelo rei com os
principais cargos e pensões. A segunda é a nobreza de Toga, que era de origem
burguesa, com cargos na magistratura; constituída por elementos oriundos da
burguesia que compravam seus cargos políticos e administrativos; era a nobreza
de função, conferida em atenção a um cargo. Parte dela era chamada de nobreza
provincial, que tinha muitas dificuldades para sobreviver. Muitos viviam no
campo, às vezes, em situação de penúria econômica e buscavam casamentos
vantajosos no seio da alta burguesia. Tanto uma quanto a outra possui um senso
social bastante profundo. É instruída, sente-se consciente de ser responsável
pelo povo. “No tempo da infância de São Vicente, as rendas dos nobres tornam-se
insuficientes e suas fileiras vêem-se dizimadas pelo duelo. Alguns se resignam
a uma pobreza honrosa, outros tentam a sorte na política14”.
2. O Terceiro Estado era a grande maioria do povo. Reunia cerca de 18
dos 19 milhões de habitantes, cerca de 98% da população, a maioria sem
privilégios. Reivindicava, principalmente, a abolição dos privilégios do clero
e da nobreza e a igualdade social.
Era composto de três categorias de pessoas:
a. A alta burguesia composta de financistas com os Gondis com os quais
São Vicente de Paulo teve longo relacionamento, os banqueiros, os industriais,
os comerciantes, os grandes empresários e as pessoas que se ocupavam da
legislações públicas.
b. A média burguesia formada pelos profissionais liberais, trabalhadores
livres e cooperados: médicos, professores, advogados, dentistas, lojistas,
proletários e artesãos. Estes últimos viviam agrupados em corporações conforme
sua especialização, e estavam sujeitos a longas jornadas de trabalho.
c. A pequena burguesia era composta por camponeses sem nível de vida
elevado. São simples trabalhadores e desejosos de possuírem suas próprias
terras. Viviam oprimidos por impostos reais, obrigações feudais, dízimos e
corvéia15.
A carga tornava-se insuportável nas secas, quando sobrevinham fome e pestes.
Entre eles estavam presentes também os servos, ainda em condição feudal que era
os camponeses livres e semi-livres.
Era sobre o Terceiro Estado que pesava o ônus dos impostos e das
contribuições para o rei, para o clero e a nobreza. O Primeiro e o Segundo
Estados tinham isenções tributárias, usufruíam as vantagens concedidas pela
monarquia sob a forma de pensões e cargos públicos.
Existe pobreza por todos os lugares. A miséria, no entanto, está mais
presente no meio rural. “O povo alimenta-se pouco e mal. A carne é um luxo. Os
legumes, a sopa, o pão misto (trigo e centeio semeados e colhidos juntos) para
os camponeses, e o pão de trigo ou de centeio para os burgueses ou nobres,
constituíam os cardápios habituais. O gado é insuficiente, a terra desprovida
de adubo, apenas removida com arado de madeira, produz muito pouco… é por isso
que as epidemias e a fome ceifam até 30 e 40% da população em alguma província16”.
A educação é quase inexistente. Aproximadamente 70% da população
masculina e 90% da população feminina é analfabeta, ou seja, a França, nessa
época tem apenas dois a três milhões de pessoas que sabem ler e escrever.
A família de São Vicente de Paulo pertence a esse mundo dos pobres. Ele
vem de uma família de camponeses. Ele mesmo dizia “nenhuma elegância, pouco
conforto, mas sem miséria17”.
Na sua infância cuida do rebanho de ovelhas e porcos. Mais tarde ele mesmo vai
falar desse trabalho. Afirma-se que conduzia os rebanhos pelas planícies de
Chalosse e às vezes, até Saint Sever, a sessenta quilômetros de Pouy, sua
cidade natal.
Seja como for, é exato falar que São Vicente de Paulo vem de um lugar
social pobre e de origens humildes. Essa experiência que passou desde a sua
infância vai marcá-lo de maneira decisiva e fundamental para o resto de sua
vida como também naquilo que irá realizar em benefício dos mais necessitados.
No entanto, nem sempre lhe foi fácil reconhecer a sua origem. São
Vicente de Paulo, ele mesmo conta, que tinha vergonha de seu pai porque andava
mal vestido e mancava um pouco18.
“A experiência de São
Vicente de Paulo, da qual se falará mais adiante, encontra-se já em germe,
nesse mundo rural. Mais tarde, poder-se-á afirmar verdadeiramente: o pobre
revelou São Vicente de Paulo a si mesmo; o choque do contato com a miséria
lembra a São Vicente de Paulo o que ele foi, a sua origem modesta, e ele a
evoca como para fortalecer-se em sua convicção e purificar o seu olhar19”.
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